“Crentes, tenho certeza, são combinados entre si, quando encasquetam com alguma coisa; perseguir alguém, por exemplo...”
Agora era assim, eu cada vez com problemas maiores, a polícia, concorrentes, outros cobradores. Mudava de cidade. Cada cidade pior que a anterior, e pra piorar não importava a distância ou o tamanho da cidade, uma coisa era certa, os crentes.
Na verdade eu não sabia dizer se sempre existiram tantos crentes no mundo e eu não notara antes, ou de uma hora pra outra brotavam crentes como brota o mato no cerrado após uma chuva. Também podia ser trauma, a experiência ruim na “toca do demo”, ou melhor, pracinha dos crentes. Era escurecer e pronto, daí a pouco eu encontrava uns crentes, se combinasse pra encontrar não daria tão certo! “Já refulge a glória eterna...” Parecia praga.
Podia dizer até em qual parte do culto eles estavam, dependia da música, isso eu sabia, dependia da música! Eu sabia. Só o lance de levantar a mão é que eu não entendia ainda.
Às vezes ouvia parte da fala, e cada vez mais odiava os crentes, recebia o folheto só pra embolar e jogar fora, lia alguns, só por ler; “fácil falar de paz, não estavam a centenas de quilômetros de casa (às vezes eu me lembrava de casa, e de mamãe.). Podiam falar de esperança, não estavam em fuga! Não corriam o risco de “rodar”, ou dar de cara com o carniceiro”. Eu estava devendo, pagavam bem pelo meu couro.
“Eram mentiras, aquilo tudo, só mentiras. Ninguém podia ser daquele jeito, feliz. Não existia lugar daquele jeito, gente daquele jeito, Deus devia ser bom, mas era para os crentes." Torturava-me. “Bandido não fica velho, morre antes”. Vivia esperando, sempre. “Como alguém podia ser crente? Eu não cairia numa conversa daquelas! Era bom demais, não era verdade.”
Agora eu vivia às voltas com os crentes, até na gang tinha o “Aleluia”, um crente, filho de crente, desviado; era o meu trunfo, a prova que eu procurava; se vida de crente prestasse um crente não sairia da igreja dos crentes pra virar ladrão e cão de guarda! “Ah, na primeira chance eu o esfregaria na cara do pastor! Só pra ver aquele sorrisinho fugindo-lhe da cara!”.
Observando o quanto “Aleluia” sofria lembrando o tempo de crente ocorreu-me arranjar um jeito de dar drogas aos crentes, no colégio; um monte de crente, viciados e sem dinheiro pra comprar mais drogas e então um monte de crentes virando ladrões, prostitutas, cães de guarda... Colossal vingança. O fim dos crentes. Mas foi só um pensamento. Pensei, e estremeci.
Vale do Jequitinhonha, saíra apressado da cidade anterior.
Nenhum amigo no colégio agrícola. Era preciso estampar o meu “crachá de otário”, não chamar a atenção. Apesar de ser um colégio interno (EAF) havia um grande número de viciados, gente pequena, fumavam maconha que plantavam nos arredores da escola ou compravam pequenas quantidades na região.
As coisas mudam...
Era madrugada quando retornei ao colégio, à base de “algafan” moído e injetado passara os três últimos dias, voltava de Taiobeiras-Mg, encomendas do barão. Assisti às aulas na horta. Dia comum e ruim. À tarde, escondido nos últimos bancos do ônibus que levava os professores de volta à cidade, ouvia a conversa dos semi-internos, tomavam optalidon, cheiravam loló, lixo forte.
Na cidade fui apresentado a uma crente, aliás, fui apresentado a várias pessoas, todas sorridentes; por se tratar de uma crente eu dediquei-me a olhar somente pra garota, não olhava pra mais ninguém, e o sorriso não era assim tão irritante, era até bom de olhar. Não senti vontade de arrancar-lhe o sorriso, isso não! Era um belo sorriso. Aquele sorriso me descansava.
Presbiteriana! Não sabia o que significava, mas que era uma bela palavra, isso era. Presbiteriana!
Agora eu sempre falava com a irmã, até o começo do namoro eu sempre me referia a ela por: a irmã! Eu, fugitivo de tantas coisas, namorando uma crente, improvável, impensável, mas era a verdade. Namorava uma crente.
Até ir à casa da namorada crente (sim, fui conhecer a família crente da namorada!) eu não tinha uma noção clara do que era viver em família; lá em casa mamãe lecionava nos três turnos e ainda costurava. Sustentar-nos, educar-nos, rigidamente. Prioridades.
Sofri um choque, aquelas pessoas rindo, e comendo e falando e rindo mais. A atmosfera me apanhou de surpresa; rir, marca daquele povo estranho. Voltaria ali muitas vezes, mas nunca ia chapado ou armado, difícil era conviver com a alegria deles, nunca discutiam, não gritavam, nunca reclamavam. Já não odiava muito.
Fui à igreja; fora as partes que eu já sabia eles me mandaram ficar de pé e eu fiquei de pé. Não sei dizer o porquê de obedecer e ficar de pé. Só fiquei.
Com todos os problemas que carregava, e com a saúde em péssima situação, decidi ir embora, as coisas dando errado, e eu sentindo inveja da vida dos crentes. Era hora de voltar para a boca do inferno. Habitat.
Alexandre Magno Aquino Duarte
(ex-interno do centro de recuperação de mendigos - Missão Vida)
Agora era assim, eu cada vez com problemas maiores, a polícia, concorrentes, outros cobradores. Mudava de cidade. Cada cidade pior que a anterior, e pra piorar não importava a distância ou o tamanho da cidade, uma coisa era certa, os crentes.
Na verdade eu não sabia dizer se sempre existiram tantos crentes no mundo e eu não notara antes, ou de uma hora pra outra brotavam crentes como brota o mato no cerrado após uma chuva. Também podia ser trauma, a experiência ruim na “toca do demo”, ou melhor, pracinha dos crentes. Era escurecer e pronto, daí a pouco eu encontrava uns crentes, se combinasse pra encontrar não daria tão certo! “Já refulge a glória eterna...” Parecia praga.
Podia dizer até em qual parte do culto eles estavam, dependia da música, isso eu sabia, dependia da música! Eu sabia. Só o lance de levantar a mão é que eu não entendia ainda.
Às vezes ouvia parte da fala, e cada vez mais odiava os crentes, recebia o folheto só pra embolar e jogar fora, lia alguns, só por ler; “fácil falar de paz, não estavam a centenas de quilômetros de casa (às vezes eu me lembrava de casa, e de mamãe.). Podiam falar de esperança, não estavam em fuga! Não corriam o risco de “rodar”, ou dar de cara com o carniceiro”. Eu estava devendo, pagavam bem pelo meu couro.
“Eram mentiras, aquilo tudo, só mentiras. Ninguém podia ser daquele jeito, feliz. Não existia lugar daquele jeito, gente daquele jeito, Deus devia ser bom, mas era para os crentes." Torturava-me. “Bandido não fica velho, morre antes”. Vivia esperando, sempre. “Como alguém podia ser crente? Eu não cairia numa conversa daquelas! Era bom demais, não era verdade.”
Agora eu vivia às voltas com os crentes, até na gang tinha o “Aleluia”, um crente, filho de crente, desviado; era o meu trunfo, a prova que eu procurava; se vida de crente prestasse um crente não sairia da igreja dos crentes pra virar ladrão e cão de guarda! “Ah, na primeira chance eu o esfregaria na cara do pastor! Só pra ver aquele sorrisinho fugindo-lhe da cara!”.
Observando o quanto “Aleluia” sofria lembrando o tempo de crente ocorreu-me arranjar um jeito de dar drogas aos crentes, no colégio; um monte de crente, viciados e sem dinheiro pra comprar mais drogas e então um monte de crentes virando ladrões, prostitutas, cães de guarda... Colossal vingança. O fim dos crentes. Mas foi só um pensamento. Pensei, e estremeci.
Vale do Jequitinhonha, saíra apressado da cidade anterior.
Nenhum amigo no colégio agrícola. Era preciso estampar o meu “crachá de otário”, não chamar a atenção. Apesar de ser um colégio interno (EAF) havia um grande número de viciados, gente pequena, fumavam maconha que plantavam nos arredores da escola ou compravam pequenas quantidades na região.
As coisas mudam...
Era madrugada quando retornei ao colégio, à base de “algafan” moído e injetado passara os três últimos dias, voltava de Taiobeiras-Mg, encomendas do barão. Assisti às aulas na horta. Dia comum e ruim. À tarde, escondido nos últimos bancos do ônibus que levava os professores de volta à cidade, ouvia a conversa dos semi-internos, tomavam optalidon, cheiravam loló, lixo forte.
Na cidade fui apresentado a uma crente, aliás, fui apresentado a várias pessoas, todas sorridentes; por se tratar de uma crente eu dediquei-me a olhar somente pra garota, não olhava pra mais ninguém, e o sorriso não era assim tão irritante, era até bom de olhar. Não senti vontade de arrancar-lhe o sorriso, isso não! Era um belo sorriso. Aquele sorriso me descansava.
Presbiteriana! Não sabia o que significava, mas que era uma bela palavra, isso era. Presbiteriana!
Agora eu sempre falava com a irmã, até o começo do namoro eu sempre me referia a ela por: a irmã! Eu, fugitivo de tantas coisas, namorando uma crente, improvável, impensável, mas era a verdade. Namorava uma crente.
Até ir à casa da namorada crente (sim, fui conhecer a família crente da namorada!) eu não tinha uma noção clara do que era viver em família; lá em casa mamãe lecionava nos três turnos e ainda costurava. Sustentar-nos, educar-nos, rigidamente. Prioridades.
Sofri um choque, aquelas pessoas rindo, e comendo e falando e rindo mais. A atmosfera me apanhou de surpresa; rir, marca daquele povo estranho. Voltaria ali muitas vezes, mas nunca ia chapado ou armado, difícil era conviver com a alegria deles, nunca discutiam, não gritavam, nunca reclamavam. Já não odiava muito.
Fui à igreja; fora as partes que eu já sabia eles me mandaram ficar de pé e eu fiquei de pé. Não sei dizer o porquê de obedecer e ficar de pé. Só fiquei.
Com todos os problemas que carregava, e com a saúde em péssima situação, decidi ir embora, as coisas dando errado, e eu sentindo inveja da vida dos crentes. Era hora de voltar para a boca do inferno. Habitat.
Alexandre Magno Aquino Duarte
(ex-interno do centro de recuperação de mendigos - Missão Vida)
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