Um monte de crentes, o inconfundível sorrisinho na boca, e nenhum medo; assim o evangelho desembarcou na "toca do demo" -- lugarzinho empesteado de uma cidade mineira -- que eu batizara de "meu território", éramos um bando de viciados, ladrões; homens violentos, desafetos.
De um lado, os "bíblias", do outro lado nós, sem a menor idéia do que fazer diante dos crentes de pé à nossa frente. Tensão.
A polícia não aparecia ali, outras gangs não se aventuravam pela "toca do demo"; a não ser um viciado enlouquecido pela fissura ou um traficantezinho de uma rua só, ninguém ia ali, alça de caixão.
Eu sabia lidar com a polícia, mal as sirenes, de longe, denunciavam-lhes a aproximação, saíamos, eles encontravam o lugar quase deserto, surravam alguns bêbados e iam embora.
Eu soubera lidar com qualquer tipo de gente até então; a chegada dos crentes aquela noite fraturou nossa rotina.
Sem armas; e sorrindo. Encafifei naquela noite, porque sorriam? "Crente, pensava eu, deve ser tudo doido, a vida é um lixo só e esse povo mostrando os dentes!"
Eles cantaram, e falaram da Bíblia e minha cabeça girava, era preciso fazer alguma coisa, da minha atitude dependia o domínio e a autoridade no “meu território”, surramos os crentes. Fizemos uma fogueira com as Bíblias que conseguimos tomar deles, uma correria louca, o “boca de gaveta” tirou o violão do rapaz que falava coisas da Bíblia. E as Bíblias ardiam.
Virei notícia; estava livre, controlei, sem um tiro, sem a polícia, e sem os “bíblias” que nunca mais se meteriam com os homens da orquídea negra (Irch! nomezinho prepotente!)
20: 00 h, eu me preparava para algumas cobranças, do telhado veio o aviso: “SAPO!” sinal para alertar sobre desconhecidos na “toca do demo”; polícia sem sirenes? Impossível. Outra gang? Muito cedo pra uma tentativa de invasão de boca. Então, os crentes.
Um monte de crentes, com o mesmo sorrisinho na cara, muitas escoriações, hematomas, mais Bíblias e um violão novo. E nenhum medo.
Era desconcertante.
Empurrões, palavrões, muitos e horríveis palavrões (os “bíblias” se intimidavam com os palavrões! Não aqueles.). Nenhum tiro; não dava pra atirar nos “bíblias”, eles não usavam armas. Lógica.
Por dezenove noites aquilo se repetiu, era de cortar os pulsos! Já não tínhamos ânimo, um sentimento estranho dominava-nos; confusos, alguns já temerosos, o que motivava aquele povo esquisito de sorrisinho na cara? Estávamos desapontados com nós mesmos. Abalados.
Por não entender de “amor de crente” deduzi que era somente aquilo mesmo, um “povo estranho”, indiferente e que nos desprezava; e de indiferença e desprezo nós entendíamos, muito, estávamos acostumados.
Optamos por sair de lá durante a cantoria, era só uma meia hora e sempre acabava com uma música que dizia: “Cristo vai hoje passar...” Depois o rapaz do violão falava, e depois cantavam: “Eu venho como estou...” E gente que assistia, levantava a mão e ia lá perto; levantava a mão e nunca mais aparecia na área pra comprar bagulho, sumia.
Às vezes, depois de algum tempo eu encontrava algum, roupas novas, uma Bíblia, e o insuportável sorrisinho na cara. Como eu odiava aquele povo estranho, e o sorrisinho!
Inquietava-me, era impossível para a minha mente comum, compreender o motivo deles voltarem, todos os dias; mas voltavam, mesmo depois de deixarmos a praça só pra eles cantarem “Cristo vai hoje passar...” e “Eu venho como estou...”, mesmo depois de levarem embora muita gente que ouvia a fala deles e nunca mais comprava bagulho, mesmo assim eles voltavam. Desesperador.
O prejuízo era sem tamanho, já entre nós ninguém se animava para falar mal quando eles chegavam. “Tinha certeza que não estavam ali por nossa causa, nós não existíamos pra eles, mesmo agora quando ficávamos em silêncio, de longe, ouvindo as músicas e a fala, éramos ignorados, foi por causa da surra, e da fogueira de Bíblias.” Imperdoável.
Eles iam lá, cantavam e depois levavam embora os que levantavam a mão na hora da: “Eu venho como estou...”. A despeito de nós, eles apenas cantavam, falavam, cantavam: “Eu venho como estou...” e chamavam as pessoas, que levantavam a mão e eles levavam as pessoas embora. Qual o sentido nisso?
Agora, três semanas depois, algumas pessoas que levantaram a mão, e foram embora, e não voltaram pra comprar drogas, voltavam pra cantar igual aos “bíblias”. Também tinham Bíblias.
Sentia-me confuso, impotente até que alguém sugeriu que enfiássemos a viola no saco; até a “toca do demo” já era conhecida como a pracinha dos crentes. Humilhante. Praguejei, fiz ameaças, “ai deles se voltassem no outro dia”; após minha bravata, recolhemos o que sobrou de nós e saímos, pra nunca mais por os pés na “toca do demo”, ou melhor, na pracinha dos crentes.
Enquanto nos afastávamos, “boca de gaveta” voltou, devolveu o violão pro rapaz, ganhou um livrinho cinza que escondeu nas calças e, ao passar por mim, acho eu, ensaiou um sorrisinho de crente.
Eu esperaria ainda, dezessete meses.
De um lado, os "bíblias", do outro lado nós, sem a menor idéia do que fazer diante dos crentes de pé à nossa frente. Tensão.
A polícia não aparecia ali, outras gangs não se aventuravam pela "toca do demo"; a não ser um viciado enlouquecido pela fissura ou um traficantezinho de uma rua só, ninguém ia ali, alça de caixão.
Eu sabia lidar com a polícia, mal as sirenes, de longe, denunciavam-lhes a aproximação, saíamos, eles encontravam o lugar quase deserto, surravam alguns bêbados e iam embora.
Eu soubera lidar com qualquer tipo de gente até então; a chegada dos crentes aquela noite fraturou nossa rotina.
Sem armas; e sorrindo. Encafifei naquela noite, porque sorriam? "Crente, pensava eu, deve ser tudo doido, a vida é um lixo só e esse povo mostrando os dentes!"
Eles cantaram, e falaram da Bíblia e minha cabeça girava, era preciso fazer alguma coisa, da minha atitude dependia o domínio e a autoridade no “meu território”, surramos os crentes. Fizemos uma fogueira com as Bíblias que conseguimos tomar deles, uma correria louca, o “boca de gaveta” tirou o violão do rapaz que falava coisas da Bíblia. E as Bíblias ardiam.
Virei notícia; estava livre, controlei, sem um tiro, sem a polícia, e sem os “bíblias” que nunca mais se meteriam com os homens da orquídea negra (Irch! nomezinho prepotente!)
20: 00 h, eu me preparava para algumas cobranças, do telhado veio o aviso: “SAPO!” sinal para alertar sobre desconhecidos na “toca do demo”; polícia sem sirenes? Impossível. Outra gang? Muito cedo pra uma tentativa de invasão de boca. Então, os crentes.
Um monte de crentes, com o mesmo sorrisinho na cara, muitas escoriações, hematomas, mais Bíblias e um violão novo. E nenhum medo.
Era desconcertante.
Empurrões, palavrões, muitos e horríveis palavrões (os “bíblias” se intimidavam com os palavrões! Não aqueles.). Nenhum tiro; não dava pra atirar nos “bíblias”, eles não usavam armas. Lógica.
Por dezenove noites aquilo se repetiu, era de cortar os pulsos! Já não tínhamos ânimo, um sentimento estranho dominava-nos; confusos, alguns já temerosos, o que motivava aquele povo esquisito de sorrisinho na cara? Estávamos desapontados com nós mesmos. Abalados.
Por não entender de “amor de crente” deduzi que era somente aquilo mesmo, um “povo estranho”, indiferente e que nos desprezava; e de indiferença e desprezo nós entendíamos, muito, estávamos acostumados.
Optamos por sair de lá durante a cantoria, era só uma meia hora e sempre acabava com uma música que dizia: “Cristo vai hoje passar...” Depois o rapaz do violão falava, e depois cantavam: “Eu venho como estou...” E gente que assistia, levantava a mão e ia lá perto; levantava a mão e nunca mais aparecia na área pra comprar bagulho, sumia.
Às vezes, depois de algum tempo eu encontrava algum, roupas novas, uma Bíblia, e o insuportável sorrisinho na cara. Como eu odiava aquele povo estranho, e o sorrisinho!
Inquietava-me, era impossível para a minha mente comum, compreender o motivo deles voltarem, todos os dias; mas voltavam, mesmo depois de deixarmos a praça só pra eles cantarem “Cristo vai hoje passar...” e “Eu venho como estou...”, mesmo depois de levarem embora muita gente que ouvia a fala deles e nunca mais comprava bagulho, mesmo assim eles voltavam. Desesperador.
O prejuízo era sem tamanho, já entre nós ninguém se animava para falar mal quando eles chegavam. “Tinha certeza que não estavam ali por nossa causa, nós não existíamos pra eles, mesmo agora quando ficávamos em silêncio, de longe, ouvindo as músicas e a fala, éramos ignorados, foi por causa da surra, e da fogueira de Bíblias.” Imperdoável.
Eles iam lá, cantavam e depois levavam embora os que levantavam a mão na hora da: “Eu venho como estou...”. A despeito de nós, eles apenas cantavam, falavam, cantavam: “Eu venho como estou...” e chamavam as pessoas, que levantavam a mão e eles levavam as pessoas embora. Qual o sentido nisso?
Agora, três semanas depois, algumas pessoas que levantaram a mão, e foram embora, e não voltaram pra comprar drogas, voltavam pra cantar igual aos “bíblias”. Também tinham Bíblias.
Sentia-me confuso, impotente até que alguém sugeriu que enfiássemos a viola no saco; até a “toca do demo” já era conhecida como a pracinha dos crentes. Humilhante. Praguejei, fiz ameaças, “ai deles se voltassem no outro dia”; após minha bravata, recolhemos o que sobrou de nós e saímos, pra nunca mais por os pés na “toca do demo”, ou melhor, na pracinha dos crentes.
Enquanto nos afastávamos, “boca de gaveta” voltou, devolveu o violão pro rapaz, ganhou um livrinho cinza que escondeu nas calças e, ao passar por mim, acho eu, ensaiou um sorrisinho de crente.
Eu esperaria ainda, dezessete meses.